12 de fev. de 2010

Maria que quis ser

Naquele tempo, naquele povoado, naquela vida que levava, a pequena Maria não sabia o que existia além da porta do ensino fundamental. A escola estadual, em terra de barro batido, era o limite(1). O exemplo que via em casa, observando a mãe, as irmãs mais velhas e as vizinhas, era que depois do colegial o que inevitavelmente viria, seria o casamento, os filhos e os afazeres domésticos. Cuidar do lar seria sua profissão, como sua mãe, irmãs e amigas. Maria já nasceu destina à vida de mulher como qualquer outra dali. Naquela casa branca de matrimônio tradicional, longe das capitais, o único norte que sua vida tinha era o tabu cego seguido incondicionalmente pelo povoado. E Maria não sabia o que era bom ou ruim, pois só existia o que os olhos viam, e daquele povoado, a visão não ia além do segundo grau.

Maria, que sempre teve um interior borbulhante reprimido pelas tradições locais, se viu apaixonada pelas palavras do novo professor(2) que apresentou o vestibular aos alunos do povoado. Os olhos dela brilharam macio a cada palavra que o professor deixava saltar da boca. Ela delirava às explicações sobre o processo seletivo que colocava os alunos em cursos superiores. Maria, que até então acreditava que a profissão era escolha única, exclusiva e intransferível da vontade divina, se sentiu abençoada por perceber que ela mesma poderia ter a profissão que quisesse. Maria borbulhou.

Maria despertou e nos livros doados pela administração pública, começou a traçar sua vida. Sentia-se possuidora de superpoderes, poderia ser médica, advogada, engenheira. Maria seria ela. Maria, antes de virar uma nova Maria, virou noites lendo tudo o que podia sobre o que seria cobrado no vestibular. Seu pai, carrancudo, fez cara feia, mais feia que a habitual. Mas rendeu-se ao encanto da mãe que viu em Maria seu sonho realizado: ser alguém. E do apoio da mãe, maria fez alicerce da sua nova vida. Sem vícios de aprendizagem, Maria não tinha parâmetros. Não sabia se estava estudando muito ou pouco, e na dúvida, estudou cada vez mais. A prova do vestibular aconteceu numa cidade(3) muito distante dali. Dias depois o resultado: Maria passou.

Maria foi morar longe, muito longe de casa. Aprendeu cedo a viver só. Conheceu o mundo urbano. Aos 17 anos dividia um pequeno apartamento com outras quatro amigas de destinos e histórias semelhantes. Maria estudou, se formou, fez mestrado e doutorado. Se antes vivia com a ajuda do dinheiro minguado e contado dos pais, passou a viver com a bolsa que a Universidade Federal lhe garantia. Pouco depois, concursada, virou professora do Universidade Federal. E passou a viver bem. Justiça foi feita. Maria guerreira, venceu a guerra e os espólios(4) lhe asseguraram uma vida melhor, como sempre sonhou. Maria, então, foi chamada para ensinar no Campus da sua cidade natal. Maria aceitou. A pequena Maria, regressou vencedora, uma grande mulher. Voltou por cima. Doutora no papel, doutora no tratamento. Virou exemplo. Maria é agora a Maria que quis ser.

1 – Onde o céu não era o limite.
2 – Lapidado pela capital.
3- Mais precisamente na Universidade Federal.
4 – Apenas no sentido figurado, claro.

P.S.: Para minha vencedora.




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