31 de mai. de 2011

Legalmente diferente.

Não me toque. Não toque em nada. Ele sempre disse. Só que desta vez pode gritar, afinal, todo o emaranhado de palavras que formam o raciocínio legal nacional está armado para isso. Montado, num amontoado esdrúxulo que não defende, mas o define como diferente. Não que ele seja, mas agora o é, oficialmente, legalmente. Parabéns para quem sempre quis unir, ser igual. Mas só conseguiu dividir e se tornar menor. Não mostrou força, mas uma forca legal. Criou uma bolha e vai morar nela.

30 de mar. de 2011

Passear

Fios brancos caindo sobre os olhos escuros. Cabeça no chão frio. Um suspiro. É cedo. Ele observa pés indo e vindo de pessoas que acabaram de acordar. Observa por entre os finos pelos brancos que escondem parte do cenário. Logo, vozes emitem barulhos incompreensíveis. Pés descalços, depois calçados e ele percebe que está chegando a hora. Ainda com rosto no chão, ele levanta os olhos e vê que alguém se aproxima. Imediatamente a cauda move-se de um lado para o outro. Com preguiça, ele põe-se de pé. Recebe um breve, leve e calmo afago na cabeça. Todos os minutos de espera valeram a pena. É hora de caminhar com quem gosta. Não sabe do ontem, não importa do amanhã. Hoje é um dia feliz.    

17 de mar. de 2011

Pedro, o grande.

Pedro era mesmo um cara diferente do normal. Normalmente era o cara tal, o tal. Tal qual ele não havia outro Pedro. Como o Pedro, não tinha quem comesse o chão que ele pisava. E assim andava o Pedro, caminhando contra o próprio andar.

Mas o Pedro viu o que não queria, quando fechou os olhos. Por dentro seus olhos buscaram o que nele havia, mas nada havia nele. Vazio e grande, o Pedro desabou mas não fez barulho quando seu corpo encontrou o chão.

Vazio, o corpo de Pedro foi levado pelo vento. Ninguém sabe onde o Pedro foi parar. Até que todos pararam de procurar. Do grande Pedro não ficou sombra, não ficou ar. Ficou o que ele tinha de maior: nada.

8 de fev. de 2011

Um dia na vida de seu Francisco III

Os chinelos de couro de bode pisam firme no chão de barro batido. Uma leve camada de poeira avermelhada sobe cinco centímetros a cada pisada daquele pé duro contra o solo. É o caminho feito ao passo de um tradicional Pernambucano de Paulista rumo ao seu destino em meados de 1940. E nesse rumo certo, abençoado pelo sol macho do nordeste brasileiro, seu Francisco segue a passos firmes no caminho de volta para casa.

Enquanto isso, no lar de seu Francisco, sua mulher prepara um almoço para receber o pretendente a marido de uma das suas nove filhas. O almoço pode significar o pedido de casamento. Pobre como era, pobre como só ela, pensava apenas em conseguir casar as filhas ainda mocinhas. Foi assim que aprendeu com a mãe, e a mãe com a avó e assim foi, e é. 


Com muito esforço, juntou algum dinheiro e comprou um bife macio no açougue do centro. O pedaço era pequeno, mas suficiente para o rapaz que receberia. Assim, acolheria bem o futuro genro e, ao mesmo tempo, mostraria todo o dote da menina nas artimanhas do preparo da comidinha boa de panela. Afinal, homem se laça pelo estômago.

Seu Francisco, que não sabia de nada, chegou em casa cansado da manhã de trabalho. O sol do meio dia abriu seu apetite como um peba abre sua casa na terra fofa. E, sem cerimônia, foi direto ao fogão de lenha ver o que de lá cheirava tão bem. Abriu a panela e viu um belo pedaço de carne fritando na manteiga. O cheiro saboroso preencheu suas narinas cabeludas e ele quase pôde sentir o gosto do pedaço de carne sinuoso. Seu sorriso abriu rápido como foice em bucho de cabra safado.

Naquele momento estava só na cozinha, sua mulher havia ido ao mercantil da rua comprar a cajuína do almoço, afinal, faltava pouco para o pretendente chegar e ela queria a bebida gelada, já que não tinha geladeira em casa. Seu Francisco pegou sua caneca velha de metal, enfiou o braço no pote de barro e tirou de lá água fresca. Sem pestanejar, o faminto trabalhador rural jogou a água na panela. A fumaça subiu até o teto e o pedaço de carne começou a boiar. Sua mulher entrou naquele exato momento e gritou:

- Chico, pare! O que você tá fazendo homi?
- Oxi mulher, essa carne tá muito rala. Eu gosto é de bife com muito molho. Carne de panela tem que ter caldo!

E assim, convincentemente, argumentou seu Francisco sem entender porque sua mulher colocou as mãos na cabeça.