15 de jan. de 2015

Holiday







     Se tem uma coisa que gosto é viajar cedo. Cedo aqui defino como: acordar junto com a luz natural.  Golden Hour, como dizem os amigos fotógrafos. Já era claro, de um dia que nasceu branquinho, quando coloquei a última mala no carro. Voltei para me certificar que nada ficaria no apartamento, sem pendências. Poderia viajar despreocupado que o prédio não seria tomado por uma labareda explosiva resultante do gás do meu fogão.
     Voltei. Gritei então um palavrão, embora só eu tenha ouvido. A chave do carro estava dentro do carro. Tranquei o carro com a chave dentro. Fiz bobagem é um eufemismo óbvio. E para ficar mais divertido, também deixei minha carteira e celular lá.
     Sem dinheiro, sem celular e com muita raiva, comecei minha caminhada domingo cedo por Boa Viagem. Meu destino? praças de táxi. Entre quebrar o vidro do carro com uma pedra e tentar achar alguém com know how, preferi a segunda opção. Só na terceira praça de táxi escutei uma sugestão para o problema. Um senhor taxista me fala, com toda a tranquilidade do mundo: "Procure o João no Holiday". Duas observações aqui: 1. João é um nome fictício, em breve você saberá o porquê. 2. Para quem não conhece, Holiday** é uma espécie de favela vertical que fica no bairro "nobre" de Boa Viagem (Recife/PE). Um edifício gigante erguido na década de 50. Enfim, embora a sugestão em nada me agradasse, não queria perder tempo e fui a pé até o dito Holiday.
     Imponente, velho, sujo e, principalmente, intimidador. Assim é o antigo prédio e seu interior. Foquei na busca, ignorei o cenário. Sempre que perguntava por João, olhares atravessados me respondiam que não o conheciam, mas insisti um pouco até que alguém me informou o paradeiro. Bati na porta, um homem magro, cabelos desarrumados, barba por fazer olha atento para mim (dos pés a cabeça) e solta um ríspido "diga". Que pode ser entendido como "quem é você e o que você quer?". Expliquei a situação. Ele relaxou. não precisou me dizer que já havia sido procurado antes para fazer o mesmo serviço que eu ali solicitava. Neste momento, pausei a vida e me lembrei do taxista. Não sei se aquele senhor foi omisso ou simplesmente acreditou que eu perceberia nas entrelinhas de suas palavras que o tal João é (ou era) um conhecido ladão de carros da região.
Qual seu carro? Me perguntou. Um celta, respondi. Fácil, disse ele. Acertamos o preço do serviço especializado: 40 reais. Tinha apenas uma nota de 50 reais na carteira que estava dentro do carro. Pediria troco ao senhor ladrão? E olha que 50 reais era muito pra mim, na época eu precisava contar cada real para que meu salário me servisse por um mês.
     No caminho de volta, trocamos algumas palavras. Percebi que ele não estava levando nada. Perguntei: “você não vai precisar de ferramentas?”, recebo um imediato e sereno: “o que eu preciso está no meu bolso”. Bom, pelo menos uma certeza, se ele não abrir o carro, não será pago. E, óbvio, se ele for pago é porque abriu o veículo.
     Ele encostou no veículo, olhou para mim e disse: “olha e aprende, é fácil, assim você mesmo faz da próxima vez”. Agradeci, embora não desejasse uma próxima vez. Em poucos segundos ele colocou um pequeno pedaço de madeira entre a porta e o teto do Celta preto, e enfiou um fino arame no espaço criado. Puxou o arame de volta e porta abriu como uma leveza de uma pluma. Sorri, peguei a nota de cinquenta e o entreguei. Ele me falou que não tinha troco. Nos despedimos, eu e ele, eu e minha cédula com imagem da onça.  Pude viajar para João Pessoa.
    
     Fim? Não.

     Uns dois anos depois, numa viagem ao interior da Paraíba, tranquei a chave do celta (Já era outro Celta, na cor prata) no porta-malas. Consegui com um morador local as ferramentas para abrir o carro. O senhor me olhou curioso abrir o carro e, por algum motivo, achou engraçado quando consegui o feito de destrancar a porta. Eu sorri simpático em seguida. Ouvi as palavras do João ecoarem: “olha e aprende, é fácil, assim você mesmo faz da próxima vez”.







* "Construído entre 1957 e 1959. “É um marco na arquitetura modernista da cidade”, explica Maurício Rocha de Carvalho, coordenador do curso de arquitetura e urbanismo da UFPE. No entanto, a megalomania do projeto do engenheiro Joaquim de Almeida Marques Rodrigues desvirtuou as nobres intenções do empreendimento. Rapidamente saiu dos classificados de imóveis para a editoria de polícia", segundo Filipe Luna.