23 de fev. de 2010

Um dia na vida de seu Francisco

Naquelas terras, naquele tempo, todo acontecido era dado como fantasia. Se perdia na história de uma época sem registro histórico, sem maioria alfabetizadas. Os acontecimentos se dissolviam no ar. Tudo se perdia com o tempo e virava lenda. Até mesmo um dia típico na vida de seu Francisco, tão verossimílimo como o ar que respiramos, hoje é tido como um conto contado e nada mais. 

Seu Francisco acordava cedo todos os dias, hábito natural naquelas redondezas rurais, afinal, energia elétrica era parte do progresso futuro. A luz que iluminava a vida da cidade era a natural e castigante luz do sol. Militar aposentado, tinha uma vida mediana para os padrões locais, no cinto uma peixeira de trinta centímetros à mostra. Na mão, desarmado, um guarda-sol preto e longo, daqueles que tem uma lâmina de metal na ponta. Mesmo com o sol a pino, trajou seu casado de linho, como de costume e, como de costume, foi a feira.

- Quanto é o abacaxi descascado? - Perguntou seu Francisco ao lânguido vendedor.

- Dois contos, senhor.

Seu Francisco largou as moedas em cima da banca de viga velha, espetou a ponta do grada-sol no abacaxi já descascado e sem cerimônia, seguiu caminho até a casa de Feliciano. Nos passos firmes que marcava a terra, seu Francisco comia o abacaxi ao caminhar, como uma criança come um picolé. Na porta da casa do amigo, mastigou o último pedaço da fruta e bateu três vezes na porta de pau. A mulher de Feliciano abre e sinaliza para seu Francisco entrar. Ele senta no sofá surrado e limpa o volumoso bigode com o guarda-sol, como quem limpa a mesa com flanela velha.

- Fica para o almoço? - Questiona Feliciano depois de horas de prosa a fio.

- Claro. - Seu Francisco rebate de imediato. 

A mulher de Feliciano chama o marido no canto e declama não ter feijão suficiente para os três e já não poderia colocar mais água, pois já o tinha feito demasiadamente. Feliciano, tranquilo, sugere que ela ofereça a grande jaca que colheram ontem antes do almoço, assim sendo, seu Francisco com o estômago tomado por bagos, não almoçaria e ainda sairia satisfeito dali.

Pois bem, sua mulher comprou a ideia e o fez, pois era sabido que seu Francisco é um grande apreciador de jaca madura. Posta à mesa, seu Francisco a abre o fruto num único golpe de peixeira. O casal se entreolha discretamente enquanto seu Francisco se farta com o viscoso fruto. Minutos depois, com a jaca violentada e sem mais nada de sobra, a mulher de Feliciano solta a pergunta:

- Seu Francisco, o senhor ainda vai querer almoçar?

- Mas é claro mulher! Jaca me abre o apetite.

O certo é que depois deste dia, Feliciano nunca mais abriu a porta antes do almoço e também nunca mais deixou faltar farinha em casa.


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12 de fev. de 2010

Maria que quis ser

Naquele tempo, naquele povoado, naquela vida que levava, a pequena Maria não sabia o que existia além da porta do ensino fundamental. A escola estadual, em terra de barro batido, era o limite(1). O exemplo que via em casa, observando a mãe, as irmãs mais velhas e as vizinhas, era que depois do colegial o que inevitavelmente viria, seria o casamento, os filhos e os afazeres domésticos. Cuidar do lar seria sua profissão, como sua mãe, irmãs e amigas. Maria já nasceu destina à vida de mulher como qualquer outra dali. Naquela casa branca de matrimônio tradicional, longe das capitais, o único norte que sua vida tinha era o tabu cego seguido incondicionalmente pelo povoado. E Maria não sabia o que era bom ou ruim, pois só existia o que os olhos viam, e daquele povoado, a visão não ia além do segundo grau.

Maria, que sempre teve um interior borbulhante reprimido pelas tradições locais, se viu apaixonada pelas palavras do novo professor(2) que apresentou o vestibular aos alunos do povoado. Os olhos dela brilharam macio a cada palavra que o professor deixava saltar da boca. Ela delirava às explicações sobre o processo seletivo que colocava os alunos em cursos superiores. Maria, que até então acreditava que a profissão era escolha única, exclusiva e intransferível da vontade divina, se sentiu abençoada por perceber que ela mesma poderia ter a profissão que quisesse. Maria borbulhou.

Maria despertou e nos livros doados pela administração pública, começou a traçar sua vida. Sentia-se possuidora de superpoderes, poderia ser médica, advogada, engenheira. Maria seria ela. Maria, antes de virar uma nova Maria, virou noites lendo tudo o que podia sobre o que seria cobrado no vestibular. Seu pai, carrancudo, fez cara feia, mais feia que a habitual. Mas rendeu-se ao encanto da mãe que viu em Maria seu sonho realizado: ser alguém. E do apoio da mãe, maria fez alicerce da sua nova vida. Sem vícios de aprendizagem, Maria não tinha parâmetros. Não sabia se estava estudando muito ou pouco, e na dúvida, estudou cada vez mais. A prova do vestibular aconteceu numa cidade(3) muito distante dali. Dias depois o resultado: Maria passou.

Maria foi morar longe, muito longe de casa. Aprendeu cedo a viver só. Conheceu o mundo urbano. Aos 17 anos dividia um pequeno apartamento com outras quatro amigas de destinos e histórias semelhantes. Maria estudou, se formou, fez mestrado e doutorado. Se antes vivia com a ajuda do dinheiro minguado e contado dos pais, passou a viver com a bolsa que a Universidade Federal lhe garantia. Pouco depois, concursada, virou professora do Universidade Federal. E passou a viver bem. Justiça foi feita. Maria guerreira, venceu a guerra e os espólios(4) lhe asseguraram uma vida melhor, como sempre sonhou. Maria, então, foi chamada para ensinar no Campus da sua cidade natal. Maria aceitou. A pequena Maria, regressou vencedora, uma grande mulher. Voltou por cima. Doutora no papel, doutora no tratamento. Virou exemplo. Maria é agora a Maria que quis ser.

1 – Onde o céu não era o limite.
2 – Lapidado pela capital.
3- Mais precisamente na Universidade Federal.
4 – Apenas no sentido figurado, claro.

P.S.: Para minha vencedora.




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8 de fev. de 2010

Zé Pastel não merecia tanta felicidade

Não, Zé Pastel não merecia tanta felicidade. Tanto que, ao se deparar com tamanha alegria, Zé Pastel veio a falecer numa noite de quarta-feira, logo após receber a melhor notícia da sua vida. O pobre coração surrado, sofrido e varrido, não aguentou tamanha felicidade. Zé Pastel, que na verdade chamava-se José Mariano Pereira Mota da Silva, ganhou a alcunha de Pastel, por ser ele, o mais conhecido vendedor de pastel da feira central daquela cidade. José do Pastel logo virou Zé Pastel. Nome que carregou durante seus 50 anos de profissão à óleo fervente. Além da massa de farinha de trigo frita, Zé Pastel também era conhecido por ser torcedor fervoroso do time da sua cidade, o Pelota Três Cores F. C.

Zé Pastel nunca teve nada, apesar de trabalhar arduamente todos os dias. Zé nunca conseguiu a casa própria. Não conseguiu ter família, pois não casou. Além de ser esteticamente desfavorecido, ou seja, fraco de feição, Zé era verdadeiramente pobre, vulgo Zé Ninguém(1). Vivia numa pequena barraca alugada numa semi-favela(2). Onde dormia tarde da noite preparando a massa e os recheios da sua iguaria, para na manhã seguinte, antes mesmo do sol brilhar, empurrar seu carrinho de ferro pesado até a feira. E assim foi pela vida toda: muito trabalho, pouco retorno.

O arrecadado quase nunca deixava sobrar bastante, o que sobrava, era apenas o pouco que ele investia em felicidade, ou seja, duas lapadas de cachaça antes de ir ver o jogo do seu time do coração. Seu time, durante os mais de setenta anos que Zé acompanhou, não conseguiu um mísero título de campeão de qualquer coisa, uma eterna tristeza. Zé Pastel era gozado todo dia seguinte ao futebol, pois seu time quase sempre perdia. Um infortúnio constante naquela pífia vida de vendedor de pastel.

Numa destas quarta-feira de futebol, tradicional no país do esporte bretão, o time do Zé Pastel precisava apenas de um empate para se classificar à quarta divisão do futebol nacional. A maior conquista daquele brioso time em toda sua glória de existência. E no estádio estava Zé Pastel, com a desatualizada camisa do time, pano velho de guerra que sempre vestia como se ali fosse o manto sagrado do deus do futebol. Num jogo chato e sem gols, 5 mil pessoas vibraram quando o árbitro apontou para o centro do gramado e apitou o final do jogo. Entre eles estava Zé Pastel, que chorava copiosamente, se perdia em soluços. Olhos vermelhos, gritos eufóricos. De joelho, entre tantos que vibravam, ninguém viu quando Zé Pastel, acometido por uma dor no tórax, levou a mão ao peito, se ajoelhou e morreu dizendo suas últimas palavras: “Eu não mereço tanta felicidade”.  

1 – Zé Pastel.
2 – Ou semi-bairro.

5 de fev. de 2010

No epitáfio de Marcel e Nadja

Marcel e Nadja. Um de um, o outro, de outro. Na casa deles era assim. Um pra cada lado. Uma coexistência quase sempre pacífica, quase nunca amorosa. Água e óleo. Era primitivo, como parasitas. Viviam até quando der. Só para estarem vivos. Respirar era mais importante do que viver. Assim Marcel e Nadja viviam. E nesta vida, viviam, viam e não aprendiam. Cediam, sentiam e sofriam. Vida de parasita. Parados, intercalando sonhos perdidos, pesados e inópios. Aprendendo a respirar o ar que sobrava do passado, intoxicante e doentio. Eram duas vidas, um lugar. Dois mundos, um lugar. Dois estranhos, um lugar. E viviam como quem nasceu para morrer. Apenas a geografia os unia. Um pacto macabro de vida. Um finge que o outro não finge e vice-versa, às pressas, as avessas. As vezes brigas, as vezes pena, sempre dor. As vezes um pouco de vida, que sumia no primeiro sopro de realidade.
Até que um morreu. Mas já não dava mais tempo o outro ser feliz. E morreu em um deles a vida do outro. Jaz, o que tanto faz, o que tanto fez. Os dois jaziam há tempos. Já não tinham mais vida. Apenas sonhos pequenos que desceram pelo ralo. No lugar de Marcel morreu Nadja, e no lugar de Nadja faleceu Marcel. Ninguém viveu, foi uma vida morta compartilhada. Amarga. Sem somas, só amostras ralas e várias divisões. E no buraco, como o ralo dos sonhos pequenos, acabou-se uma vida a dois que ninguém vai lembrar, pois nunca existiu. No epitáfio de Marcel e Nadja, Nadja e Marcel escreveram. E até que a morte os separem, morreram separados. Só a morte os juntou. No mesmo buraco dos sonhos pequenos, em tempos ligeiramente diferentes, mas na mesma porção de terra fétida, decrépita onde agora permanecem juntos e calados, como sempre foi. Agora, uma coexistência que só servirá aos parasitas, vermes e vegetação de cemitério. Para todo o sempre.

3 de fev. de 2010

Na Calçada de Dona Branquinha ou como as coisas não são.

Era noite, era quente. Na calçada de Dona Branquinha, Magda passa e encontra a amiga Marisa perdida no tempo e espaço. E perdida estava admirando, paciente, as estrelas que não mudam de lugar(1). Apesar do peso da sacola com os mantimentos da semana, Magda resolve ir até o outro lado da rua e questionar a amiga por onde anda os pensamentos.

- Marisa, mulher, que cara é essa?
- De trouxa – responde com olhos d´água.
- Conte pra sua amiga, vá... - Magda larga a bolsa na calçada e se aproxima da colega.
- Vi Carlão saindo do motel.

Um instante infinito de segundo paira em silêncio entre as duas, exceto pelo som da vassoura de Dona Clarinha, que há sessenta anos varre a calçada na mesma hora, todo dia. Os olhos de Marisa focam o chão e deixa escapar uma lágrima. Os olhos de Magda congelam e crescem rubros frente à notícia. Magda tenta achar o prumo, mas só encontra a revolta.

- Como era essa mulher? - em alto tom, pergunta Magda, indignada.
- Não consegui ver direito – suspira – estava nervosa.
- Era bonita? Jovem? Como era? - Magda chuta a sacola. Tomates rolam em toda direção. Uma lata de leite em pó acerta o muro num estalo metálico, a tampa da mesma baila brilhante até morrer no canto do muro.
- Calma amiga – pede Marisa, assustada com o descontrole da colega.
- Como calma?! - Magda leva os braços aos céus. - Esse desgraçado vai ver só uma coisa – bufa – ah vai, há se vai.

Antes de partir, Magda chuta mais uma vez o saco de compras, fazendo o repolho voar por um breve instante até pousar em pedaços na calçada de Dona Branquinha. A dona(2) da calçada se assusta, para de varrer e entra em casa. Magda sai falando sozinha, esbravejando para os quatro cantos que Carlão vai pagar. Marisa, atônita, se cala e engole seco a reação da amiga, melhor, ex-amiga. Afinal, para um bom espremedor, meia laranja basta. Já Carlão(3), quando chegou em casa foi informado que não era mais casado. Ele nunca soube o motivo.

1 - Roberto Carlos, desculpe.
2 - A calçada, que por ser pública não tem dono, tem Dona Branquinha como dona.
3 - Marido, melhor, ex-marido de Marisa.